Ellen Maria Martins de Vasconcellos é graduada, mestra e doutoranda em Letras pela Universidade de São Paulo, autora de Gravidade (2018) e Chacharitas & Gambuzinos (2015), além de tradutora – tendo vertido ao português autores como Fernanda Trías, Sara Gallardo, Romina Paula, Natalia Litvinova, Carina Sedevich e Ben Lerner.
Seu mais recente trabalho inaugura a prosa de César Vallejo – peruano precursor do real maravilhoso – no Brasil: a tradução de ESCALAS MELOGRAFIADAS & FÁBULA SELVAGEM (Editora Bandeirola).
– Como nasceu sua relação com a literatura espanhola e hispano-americana?
Minha relação com a literatura espanhola e hispano-americana nasceu com a graduação mesmo…. sempre gostei de ler, mas na adolescência, eu só lia os brasileiros infanto-juvenis, livros de vestibular e os clássicos da literatura. Não tinha lido ninguém da literatura hispano-americana…
Até que na faculdade, uma chavinha virou dentro de mim. Meu primeiro professor de literatura foi o Mario Gonzalez, quem também foi o fundador da área de espanhol na Universidade de São Paulo… ele transmitia tanto amor pela literatura, que me contagiei… Além disso, acho que cursar uma universidade pública me fez “ter uma dívida pública” que é o de transmitir o que aprendi para o mundo… por isso, desde então, tento fazer o mesmo que Mario González fez por mim.
– Como foram os intercâmbios?
Viajei em épocas que abriam muitas bolsas de estudo…
No meu intercâmbio para Salamanca, em 2009, eu fui muito interessada em apreender a língua, que ainda me parecia ser muito difícil. Mas chegando lá, percebi que a língua era um meio para que os interesses se multiplicassem… me dediquei nas aulas de línguas, e através dela pude estudar arte, história, cinema, poesia… foi uma grande incubadora de paixões, rs.
Já em 2010, eu fui parar na Universidade de Buenos Aires, nos cursos que mudaram a minha vida… tive aula com Graciela Speranza e Elsa Drucaroff que me apresentaram dezenas de romances contemporâneos incríveis da literatura argentina, além de autores de teoria e crítica que se tornaram basilares para meu desenvolvimento como pesquisadora. Sem este semestre não existiria meu projeto de mestrado e doutorado. Mas é isso… foi preciso aproveitar, se jogar na oportunidade, e estudar como nunca tive antes, porque foi bem difícil. Foi quando tive consciência que um curso de Letras é, na verdade, um curso de Humanidades… então é preciso estudar sociologia, psicologia, antropologia, filosofia… muitas horas de foco e concentração!
Em 2012, em Guadalajara, eu já tive outra ideia… a de aproveitar onde eu estava… então estudar sim, mas também conhecer vivendo… consegui conciliar as matérias que eu fiz nas áreas de história, gêneros dramáticos, educação e cinema, com algumas viagens… que me fizeram entrar em contato com muita gente, muitos artistas e intelectuais, inclusive… quase um trabalho de campo mesmo. Colima, Michoacán, Guanajuato, Ciudad de México, San Luis de Potosí… Me apaixonei pelo país, e sou até hoje.
– Como está sendo o doutorado?
Meu doutorado tem sido longo e árduo, pois desde o princípio tive que conciliar com trabalhos de mais de 40 horas semanais. Mas isso não mudou nem minha vontade de estudar nem meu interesse pelo tema, que na verdade, só aumenta. Eu sou uma entusiasta do que investigo… que é a literatura contemporânea que trabalha com narrativas de catástrofes… Ainda que eu não avance o quanto gostaria, todo ano me obrigo a participar de congressos e simpósios para prosseguir mesmo no passo da formiguinha. Tenho até julho de 2024, e até lá, muita coisa pra ler e escrever sobre o assunto… que não para de crescer!
– Em sua poesia, há influência dela?
Minha poesia é impregnada dos autores que leio e releio, não posso evitar. O “Chacharitas & gambuzinos”, meu primeiro livro, é mais uma antologia do que já tinha escrito até o ano da publicação, 2015, e foi inteiramente autotraduzido… para o espanhol e para o português. Foi bem divertido… a literatura hispano-americana está presente ali, citada, em vários poemas. Já meu livro “Gravidade”, de 2018, é mais um projeto de começo-meio-fim, e fala de língua e maternidade… a literatura aparece ali, mas mais sutil.
Aqui um poema de Chacharitas & gambuzinos:
Se em me sinto latino-americana?
Se me roubam a prata como às uruguaias
Se me matam de fome como às peruanas
Se me secam de sede como às bolivianas
Se me arrancam a língua como às paraguaias
Se me tiram os olhos como às jamaicanas
Se me desaparecem as veias como às panamenhas
Se me queimam a pele como às dominicanas
Se me comem a carne como às brasileiras
Se me querem distante como às cubanas
Se me querem invisível como às guianas
Se me querem pequena como às equatorianas
Se me querem muda como às nicaraguenses
Se me querem surda como às salvadorenhas
Se me querem puta como às porto-riquenhas
Se me querem escrava como às mexicanas
Se me querem pobre como às haitianas
Se me querem morta como às guatemaltecas,
Sim, eu me sinto latino-americana,
e inclusive depois de morta
seguirei sendo desta terra.
– Qual a sua história com César Vallejo?
Sou muito fã da poesia de César Vallejo, “Trilce” é uma obra-prima, e “Los heraldos negros” não fica por menos… mas não conhecia seus contos. Quando a Sandra Abrano me convidou para a tradução do “Escalas melografiadas” e do “Fábula selvagem”, foi que fui atrás de sua prosa e me encantei perdidamente. Vallejo tem uma prosa enxuta, mas que envolve o leitor a ponto de hipnotizar. Não precisa fazer gracinhas e entregar nada mastigado para capturar o leitor até o fim: essa é a genialidade da boa escrita. Dá para ver que é um autor que se dedicou e se debruçou sobre todas as palavras escolhidas, para criar narrativas que mesclam erudição com elementos populares, que enredam o leitor em tramas que poderiam ser classificadas quase como lendas urbanas, com personagens sombrios, mas de alta qualidade estética.
– Como foi seu processo de tradução?
Separei por livros. E cada livro, também fui por partes. Fiz uma primeira tradução livre e mais corrida, digamos, como se estivesse lendo e traduzindo simultaneamente, sem parar nas partes mais complicadas. Depois, parti para uma segunda etapa, onde realizei todas as buscas por termos que exigiam pesquisa. E em uma terceira e quarta etapa, fiz mais leituras, tanto com o original, fazendo cotejo, quanto apenas com a tradução, para acertar eufonia (leitura fluída do texto), ortografia e pontuação, e detalhes que podiam haver passado.
– O que mais gostou de encontrar em seu novo livro?
Minha maior surpresa foi o tratamento que o livro de contos do César Vallejo recebeu pela editora Bandeirola… todo o processo editorial é feito com muito cuidado e muito diálogo… entre tradução, edição, diagramação, etc.
Além disso, o livro ganhou capa dura, prefácio, texto crítico… é ainda mais gratificante traduzir com tamanha valorização do autor e também da tradução… meu nome vai na capa! Não são todas as editoras que tomam essa decisão.
– O que podemos dizer da importância/emoção de trazer o autor ao Brasil?
É sempre uma responsabilidade trazer um autor para a língua portuguesa, mais ainda quando é um autor tão de renome e tão lido quanto César Vallejo, mas eu não vejo a hora mesmo de ver os comentários, resenhas, críticas etc. do livro e também da tradução. Acho importantíssimo para a formação dos leitores e também para minha formação como tradutora, que nunca acaba.
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